Não se lembra do primeiro livro que leu. Mas não esquece a felicidade do dia em que conseguiu juntar as letras e palavras dos pacotes dos pequenos-almoços. No baú da infância, guarda mais páginas de memórias. A casa onde cresceu – bem apetrechada de livros – e a bizarra experiência de travar conhecimento com Kafka aos dez anos, por intermédio do irmão mais velho. “Li “A Metamorfose” e, claro, não percebi nada”. Como muitos, o jovem de 30 anos, formado em Psicologia, cresceu com as obras da inglesa Enid Blyton, à medida que embarcava nas aventuras dos famosos “Cinco”. Actualmente, lê de tudo. “Não sou fundamentalista. Até faz algum sentido ler livros maus. Mas os bons produzem homens e mulheres com mais qualidade”, sustenta. Na primária, era o miúdo mais introvertido da turma, que delirou com a visita do contador de histórias Joel Branco. Debelada a timidez, é o único daquele grupo com um trabalho que o obriga a falar em público.
Cada sessão que lidera é um livro aberto. Só nos últimos três anos, conduziu mais de mil. No passado dia 23 de Novembro, esteve na Escola Secundária Manuel Cargaleiro, no Fogueteiro, para um encontro interactivo recheado de “Enamoramento, amor e outras coisas”. Camões, Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner, Mário Henrique Leiria e José Luís Peixoto foram alguns dos autores convocados para o tema do dia. O grupo não excede os 20 alunos, maioritariamente do 10ºano, da área de Economia. À partida, não sendo a assistência de Humanidades, o desafio é maior. Tenta fugir aos programas escolares e às análises convencionais, já que os contos e poemas “vivem sobretudo da sua alma”. É essa a bondade da literatura, que nos permite descobrir o nosso sentido no interior de cada texto.
Filipe é o principal resistente do Grupo O Contador de Histórias, que se estreou em 1995. Tudo começou numa rádio local de Tomar. Filipe e o irmão – a sua principal influência no gosto pelas letras – intercalavam a música com a leitura de textos tem+áticos e skteches. Depois de um recital de poesia a que deram o nome de “O Contador de Histórias”, começaram a ser requisitados por várias escolas e a apostar numa vertente pedagógica. Por esta altura já o grupo era composto por quatro elementos. Não tardou até que os encontros de leitura ganhassem asas e voassem por todo o país. Começava uma extensa digressão, dirigida a todos. Objectivo: pôr os portugueses a ler mais e melhor. “Não se trata de ensinar, mas de sentir o prazer pela leitura e partilhar experiências”, explica Filipe, que procura sobretudo estimular o imaginário infanto-juvenil. A missão actualiza-se de cada vez que um novo bebé vem ao mundo. “É possível criar laços de afinidade até através dos livro-esponja que se levam para o banho".
SOS para pais contadores
Na agenda de Filipe Lopes há cada vez menos folhas em branco. O número de solicitações é tão expressivo, que lhe permite dedicar-se exclusivamente à actividade., promovendo, desde há dez anos, encontros, recitais e oficinas de formação. A missão de estimular os hábitos de leitura e dinamizar o convívio cultural abrange um espectro etário dilatado. Tanto trabalha com o pré-escolar, como com idosos – um dos grupos mais morosos, mas também mais estimulantes, pela facilidade com que se invertem os papéis e os mais velhos assumem o papel de narradores. O Contador de Histórias leva o encantamento da leitura a escolas, bibliotecas, livrarias, lares, hospitais e estabelecimentos prisionais, no âmbito de programas de reinserção social.
A pensar nos pais, desenvolve sessões de formação específica para os educadores aprenderem a melhor forma de contar histórias aos mais pequenos. Existem algumas dicas preciosas para cativar a imaginação dos rebentos. Por exemplo ler antecipadamente a obra.
Texto Maria Ramos Silva
Fotos Pedro Catarino |